Até uma gota d'água consegue se diferenciar das outras em meio a uma imensidão sem fim de gotas iguais...Mas por que nós, seres humanos, instituídos por uma razão e uma pretensa capacidade de pensar, insistimos tanto em sermos iguais uns aos outros?

Vivo a diferença a cada suspiro meu, a cada gota de suor, a cada raio de sol, a cada novo luar, a cada sinapse neurótica de meu cérebro, a cada instante, a cada momento, a cada sempre...

Viva a diferença, não ao estereótipo!



"Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho."

Fernando Pessoa

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A Morte e a Morte do Bode

 
Um vento frio soprou ao ouvido de Gertrudes. Dado seu corpo pouco e mancebo, recebia aquela brisa como um furacão. Lembro muito bem do dia de sua morte. Àquelas épocas, as espinhas em seu rosto e os peitos crescidos já lhe denunciavam uma idade adolescente. Segundo me consta, completava àquele dia 15 anos; 16 se não me falham as sinapses...

Hermenegildo, seu pai, lhe prometera um bode no dia de seus anos. Contudo essa promessa tinha já quase a mesma idade de Gertrudes, sempre renovada com furor (por parte dele) e dúvidas (por parte de quem ouvia) a cada abril.

Entretanto a tal promessa fez-se carne. Deixou de ser morta e passou a ser vida, vivida, vívida! “Esse ano enfim o bode sairá do curral”, brincavam os amigos de Hermenegildo no bar da próxima esquina; “até que enfim vai sair o bode de Gertrudes”, chacoteavam os gaiatos buscando um duplo sentido sem sentido, uma piada de mau gosto que só fazia rir aos desalmados.

Gertrudes era tão pequena de corpo e de espírito que não podia evocar nas pessoas senão pena. Pernas finas e entortadas, um rosto com zigomas salientes, de ossos e olhos estampados. Talvez nem o seio da riqueza a fizesse bonita. Tinha, por assim dizer, um corpo faltoso... mirrado e inescrupuloso.

De criaturas assim não se deveria fazer troça; nem fazer-se rir dela. Apenas ter dó: era o que ela evocava já à distância. Esse era o pensamento que povoava o imaginário das pessoas que a conheciam. Contudo, a vida pulsa. E, como que para afirmar o perene pulsativo da existência humana e recusar regras facultativas, os gaiatos ainda insistiam em tirar sarro da pobre faltosa e feiosa.

Tal qual uma Macabeia retirada de uma obra literária – nervosa, nordestina, pouco afamada, infame – ou uma Geni emprestada à vida por uma peça de teatro – despedaçada, humilhada, abusada, infantilizada, des(res)peitada –ou um Lima Barreto sacado à algibeira da morte – pobre e preto – Gertrudes muito lembrava um estigma e uma identidade: um estigma de quem sofre a angústia de não ter; uma identidade assumida gratuitamente por tantas pessoas vida afora...

Dir-se-ia que Gertrudes, inclusive, não tivera sorte nem ao receber seu nome. Mas isso, logicamente, não vem ao caso.

O fato é que o tal bode sairia, enfim, do mundo platônico e desceria às entranhas da realidade. Viria a Gertrudes como que lhe fazendo um sacrifício para sua vida, à maneira dos antigos prestarem homenagens a seus deuses. “Qual, Gertrudes nunca chegaria a dona-de-casa, como teria sacrifícios rendidos em seu nome?” pensavam as beatas velhacas da comunidade.

O tal bode, sacrificando sua vida, serviria como um acalanto à vida-quase-morte de Gertrudes. O bode – de pernas finas e tortas tal qual uma Gertrudes em versão caprina – cumpriria a função de dar alguma alegria àquela pobre alma castigada pela seleção natural; identificada à carência; esquecida pelo Estado. Apesar de tudo, tinha em conta que era amada por Deus.

Hermenegildo acordou Gertrudes cedo àquele dia. A despeito de tudo, nutria um bem querer pela filha, queria que ela percebesse seu esmero em lhe cumprir a promessa e desejava que ela presenciasse todo o processo da festa de seus anos. Viúvo, também sofria do padecimento de não ter. Era mais um infame da História que minha história – Deus seja louvado! – retira do obscurantismo.

Quando Gertrudes enfim levantou da rede, uma remela ainda lhe cobria os olhos escuros. O rosto inchado e as olheiras delatavam que sua noite fora mal dormida – provavelmente por conta de seu aniversário, ficara bastante ansiosa.


***


O bode já estava amarrado ao pé da mangueira. Poucas horas o separavam da vida e da morte. Era como um condenado que não sabia que iria cumprir um infortúnio. Seus olhos descobriram os de Gertrudes e os fitaram decididamente. Por via das dúvidas (ou por não saber agir sobre o mundo de outra forma), Gertrudes teve logo medo. Os olhos do animal eram de um negro gritante, um escuro mortífero.

Veio a primeira paulada na cabeça. A vida agonizava no caprino. Gertrudes gemia seu medo. O bode, já empapado do próprio sangue, estrebuchava suas últimas réstias de vida... a morte era iminente. A faca, afiada e certeira, já improvisava um buraco ao pescoço do bode, à guisa de sangradouro. Em baixo, a tosca bacia recebia os jorros sanguíneos do animal.

“Qual o sentido de tudo isso?”, indagava-se a tísica Gertrudes, “porque algo tem que morrer para comemorar minha vida? Aliás, o que comemoro se minha vida é apenas um cumprimento de sentença, se meu grande castigo é viver, se meu único alento é saber que cada vez estou mais próxima da morte?”.

Diria eu que sorte tem o bode que não sabe pensar. E se sabe, acredito, não consegue elaborar-se questões tão alongadas e complexas.

O bode fora posto de ponta cabeça. O sangue corria fluído rumo à bacia, obedecendo às leis da gravidade, como um rio que nunca se recusa deitar-se ao mar. A vida esvaía-se por cada esfíncter do bicho: olhos, narinas, ânus, boca, um pouco por cada poro... Encontrava-se já no meio termo – semelhante àquele entre a vigília e o sono, no qual os pensamentos são desgovernados e estúpidos– entre viver e morrer. A vida do bode, dissolvendo-se em morte, escapava de seu corpo a modo de fumaça por uma chaminé.

Morrer é uma ação?

A vida de Gertrudes, que tão poucos bens ou prazeres conhecia, estava um tanto mais atarantada àquela manhã. Por que tanta crueldade para morrer (o bode)? Por que tanta crueldade para viver (ela mesma)?

A pequena ficava olhando pasmada e curiosa até onde ia a vida naquela criatura. Qual era mesmo a passagem? Quando saber que ele realmente não mais existia enquanto ser animado e passaria a ser apenas um ser sem vida? Um estrebucho inesperado retirou Gertrudes de seu pequeno torpor. Seria um retorno à vida, tal qual um Lázaro? Ou seria apenas um reflexo involuntário e sem função anatômica que a seleção natural deixou escapar?

Àquela pergunta, Gertrudes não parava de elaborar hipóteses para, tão logo, descartá-las. Até onde vai a vida? Qual a real passagem morte-vida/ vida-morte? Seria um princípio conservacionista de Lavoisier, na qual uma se transformaria na outra, em um ciclo sem fim?

O bode ainda debatia-se contra o fluxo inevitável da morte. Seus últimos instantes de ser vivo conheciam a dor inumana de ser morto friamente por um humano. Enfim, parece que se diluíram, de fato, os últimos esgares de vida naquele organismo. O último embate, a derradeira agonia, a dor final, o crepúsculo da vida. A morte, silenciosamente, ocupava seu lugar no corpo do bode e na cabeça de Gertrudes...




02-abril-2012


A General e seu labirinto


A preta indumentária da alemã acre

a dose vil e diária do verde conhaque

as retinas esbugalhadas ante o massacre

a estúpida passividade ao grande baque.

 

Tenaz e seguro, rosna a general:

!Abaixo os caixões! !Acima meus canhões!

Decida-se a vida:!que se rompam os grilhões!

que nos amarram a esses pedaços por poucos tostões.

 

A generalíssima alemã quebra sua corrente

mar em fogo, prisca de brisa, liberdade demente

conhaque fosco, abutres, nervos dormentes.

 

O mar e o céu são o mesmo mundaréu a arder

Roleta russa em carrossel: animais prestes a morrer.

O eco da morte, último estampido, gemido de não viver...

 

 
07.jun.2013
 

Metrópole Urbana


O cheiro dos lixos que infestam as cidades

suas ruas, seus espaços, suas metades.

Metade de gente que produz o lixo cotidiano.

Metade de gente que é o próprio lixo humano.

 

Quadriláteros urbanos, conforme preceitos médicos

contornam as artérias da urbe, repetindo ideais ascéticos

de metrópoles limpas e saudáveis – em suma higiênicas.

Ruas que se conformam em vomitar verdades anêmicas.

 

A cólera, a embriaguez, a loucura, a degeneração

males que nos acometem em tempos modernos

nos espaços urbanos que tomamos como nossos.

 

Desordem, palidez, delinquência e vadiação

eventos que reclamam remédios todos os invernos

nos espaços urbanos que tomamos como nossos.

 

 

20.maio.2013