Até uma gota d'água consegue se diferenciar das outras em meio a uma imensidão sem fim de gotas iguais...Mas por que nós, seres humanos, instituídos por uma razão e uma pretensa capacidade de pensar, insistimos tanto em sermos iguais uns aos outros?

Vivo a diferença a cada suspiro meu, a cada gota de suor, a cada raio de sol, a cada novo luar, a cada sinapse neurótica de meu cérebro, a cada instante, a cada momento, a cada sempre...

Viva a diferença, não ao estereótipo!



"Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho."

Fernando Pessoa

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A Lagoa da Perdição


Esse mês, devido às "bodas de prata" do município de Cruz, em janeiro próximo, presto aqui uma homenagem à referida cidade.

Conta a tradição oral que, em terras piauienses, um anônimo retirante padecia de fome, sede e cansaço. Relegado aos desígnios do calor em terras deveras quentes, tal sujeito pediu abrigo em uma fazenda, que segundo consta a boca dos mais antigos, seria a do Coronel Teixeira Pinto, que teria ali se instalado fugindo de Portugal, aproximadamente no ano de 1687, devido a guerras vicinais em terras ibéricas.
Sendo compadecido com o sofrimento do retirante, logo ofereceu abrigo, comida e água para aquele corpo magérrimo. Mas, não satisfeito com a água, a comida e o abrigo que lhe fora ofertado, o incômodo hóspede começou a flertar com a filha do fazendeiro. Em não muito tempo, esta já estava entregue aos braços ardis e viris do retirante, apesar de as regras sociais da época ver em tal comportamento algo inaceitável. Assim, os dois amantes tiveram pouquíssimos - todavia únicos – momentos de amor lascinante e assaz.
Ao ser descoberto, o viajante a fim de salvar a própria vida abandonou um pedaço dela: fugiu dali, deixando sua amada em solitários lençóis. Poderíamos nos perguntar de que vale a vida sem o amor da mulher – ou do homem – amada (o). Mas não é o propósito de tal relato.
Tal como um Ulisses às avessas, o tal homem fugiu dali, desmistificando seu idílio e transformando-o numa bruta realidade a fim de sobreviver. A pobre moça desvirginada de nada se aproximou da Penélope do mito grego. Assumiu, pois, uma caracterísitca psicótica: refém imaginária do viajante, seguiu-o por terras e florestas ainda virgens, desvirginando-as junto com seu amado.
Ainda segundo as falas senis, o velho fazendeiro jurou morte aquele corpo que lhe traíra e danificara o corpo de sua filha. Aquele Dom Juan sertanejo iria pagar com seu próprio sangue o sangue que fizera brotar das entranhas genitais de sua filha. Pois, como se sabe, “honra se paga com sangue!”
O que se segue, é uma saga de um pai desesperado pela falta de hímen em sua filha e, ao que tudo indica, guiado pela ira e não por sua razão, desbravou serras, matas fechadas, carnaubais, coqueirais. Passou por entre bananeirais, cajueirais, viu pores-do-sol invejáveis, bebeu água dos rios – por vezes salobra – , viu o mar de perto, sentiu o calor no sangue e o calor do Sol do Nordeste. As paisagens as quais passou causam inveja ao mais insensível dos mortais.
Incontáveis foram as mutucas que lhe aperrearam em seu contra-idílio, inúmeras as muriçocas que lhe pertubaram o sono cada vez mais desconfortável. Carne, só comia quando um preá vacilante passava por perto de seu alazão, pois, cego pelo ódio de amor à filha, só tinha os olhos pregados ao horizonte e ouvidos atentos a qualquer vestígio de seu infame hóspede. Alimentava-se do desejo de vingança, tão quente quanto o sangue que fluía por entre suas veias.
Enfim, em nome da honra, passou fome, sede e privações outras em busca de recuperar o mal que fizeram à sua filha. Tudo em riba do lombo (cada vez mais duro) de um cavalo.
A saga só tem fim quando, nos limites do litoral-norte cearense, o tal desvirginador foi, enfim – em nome da moral e dos bons costumes – , assassinado às margens de uma lagoa. O fazendeiro, ainda instituído por uma moral cristã e, ao que parece, ensandecido com sua própria consciência ao mesmo tempo que receioso dos males celestes, fincou, às beiras da lagoa onde ele assassinara seu quase genro, uma tosca cruz confeccionada ali (ainda por mãos ensaguentadas de assassínio) por dois gravetos tortos e insinuosos que, ironia das ironias, lembravam, por seu formato cilíndrico, um pênis.
Logo um pênis, alvo de toda aquela fúria. Sede de toda a vingança! Mola propulsora de toda aquela viagem. Mas não havia tempo para pensar nisso, o importante era ir embora dali o quanto antes e dar àquele indecente corpo um enterro, por assim dizer, cristão.

* * * * *

Em tempo: Perto de tal cruz, às margens cúmplices da lagoa, deu-se origem, em algumas dezenas de anos, um povoado tão pequeno quanto escondido. Não à toa, o montante de água ficou conhecido por Lagoa do Escondido e, o povoado que dele brotou, veio a chamar-se, devido ao heróico ato do pai em busca do tesouro perdido de sua filha, Cruz.



31.Ago.2009

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